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O corpo camusiano

O absurdismo de Albert Camus é o horizonte de significação do corpo camusiano ou corpo sisífico, corpo de pedra viva, corpo preso à pedra que ele ama tanto ao ponto de passar a eternidade empurrando-a morro acima, para vê-la despencando morro abaixo e, assim, recomeçar o seu trabalho. Partindo do clássico Mito de Sísifo, Camus transmuta a pena tartárica[1] em solução filosófica para o problema do absurdo ou do ser de modo a transformar o corpo sisífico em corpo de amante que alterna entre o Eros e a Philia, entre o desejo de estar junto da sua amada quando ela lhe escapa das mãos no alto do morro e a alegria de abraçá-la quando se reencontra com ela na planície. Em Camus, Sísifo vivifica a pedra, transforma-a em um ser animado, como fizera Pigmalião em relação à Galateia[2]. Contudo, o preço que Sísifo paga por essa animação da pedra é a metamorfose alimentar do seu próprio corpo, que passa a viver da imanência radical da carne de pedra, da recusa absoluta de toda transcendência. O corpo sisífico, portanto, não é o do cidadão de outro mundo, não acredita em ultramundanidades salvadoras; ele é o corpo que ama a imanência da dor e do sofrimento da vida, à qual se agarra com um elã de amor fati[3] e de aceitação do eterno retorno do mesmo. O corpo sisífico, enquanto corpo desentranhado do "confronto entre o apelo humano e o silêncio despropositado do mundo" (CAMUS, 1989, p. 24), é o corpo do sentido filosófico-musical, que age na estreita senda que separa o corpo cadavérico resultante da nadificação do sentido pelo suicídio existencial e o corpo metronômico que resulta da negação do sentido pelo suicídio filosófico.

Notas(s)
[1] Um dos padrões da pena tartárica são as atividades repetitivas e improdutivas. Nesse linha, podemos encontrar vários equivalentes do Mito de Sísifo, como o do Tonel das danaides, o tonel sem fundo que as quarenta e nove filhas de Dânao, condenadas ao Tártaro por matar seus maridos, deviam tentar encher por toda a eternidade. Machado de Assis, no conto A Pianista, compara esse tonel a um escoadouro que impossibilita o enriquecimento.
[2] Pigmaleão, em Ovídio e Higino, representa um nobre escultor que se apaixona pela estátua [Galateia] que esculpira ao tentar reproduzir uma mulher diferente das vulgares cortesãs de Chipre e obtem de Afrodite o consentimento da união carnal entre os iguais em nobreza; em Rousseau, é a alma de um indivíduo que ofende a natureza ao se dividir em duas e, como reestabelecimento do estado natural, os deuses transformam a segunda alma, a feminina presa na pedra, em um novo indivíduo vivo.
[3] Amor fati significa amor ao fado como destino, sorte e estrela da vida, em todos os seus aspectos, dos mais benfazejos e prazerosos aos mais cruéis e dolorosos. Em Nietzsche, é o sim da terceira metamorfose do espírito rumo a sua liberdade, que de camelo passa a leão e, deste, à criança.

Referência(s):
CAMUS, Albert. O mito de Sísifo: ensaio sobre o absurdo. Tradução Mauro Gama. Rio de Janeiro: Guanabara, 1989.
COSTA, Israel Alexandria. O corpo camusiano. Arapiraca, AL: Grupo de Pesquisa Gnosiologia, Ética e Informação / CNPq / Ufal - Projeto Web Filosofia, 2021. Disponível em: https://www.gpgeinfo.org/p/cmscrp.html. Acesso em: 21 jun. 2021.
OVÍDIO. Metamorfoses. Tradução Vera Lucia Leitão Magyar. São Paulo: Madras, 2003.
ROUSSEAU, Jean-Jacques. Pygmalion. In ROUSSEAU, J.-J. Œuvres Complètes. Paris: Gallimard, 1961. v. 2, p. 1224-1231.

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