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O corpo foucaultiano

Em Vigiar e Punir, tratando das relações de poder que exploram a plasticidade do corpo humano em sociedades estatalmente organizadas, Michel Foucault (1926-1984) afirma que "é dócil um corpo que pode ser submetido, que pode ser utilizado, que pode ser transformado e aperfeiçoado" (1999, p. 163). Em seu contexto originário, essa afirmação não é exatamente um argumento favorável à tese de que o corpo dócil não passaria de um funesto produto do processo civilizador[1] e sufocador da genialidade[2] imposto pelo poder repressivo do Estado sobre indivíduos naturais, pois Foucault postula uma teoria da produção que põe sob suspeita a teoria da repressão. Segundo Michel, o sistema da disciplina que fabrica corpos dóceis depende menos de um autoritarismo repressor de liberdades do que de um detalhismo produtor de utilidades, pois os aspectos formadores do corpo dócil são as técnicas de vigilâncias e de punições microfísicas que talham habilidades corpóreas para lutas em guerras nacionais, danças em espetáculos teatrais, operações com máquinas em linhas de produção, cumprimentos de horários em rotinas escolares etc. O corpo do perfeito soldado, o do perfeito bailarino, o do perfeito operário, o do perfeito aluno seriam, quase que literalmente, corpos talhados pela ação detalhante da disciplina, a qual estaria para a anatomia do corpo dócil como a arte de talhar pedras, para o edifício arquitetônico. Com efeito, os hábitos corporais de um perfeito aluno, por exemplo, devem muito à disciplinarização escolar, isto é, ao retalhamento do tempo natural em horários cronometrizados; ao retalhamento do saber natural em áreas específicas de conhecimento; ao retalhamento do devir espontâneo em comportamentos institucionalizados etc.

Referência(s):
COSTA, Israel Alexandria. O corpo foucaultiano: material de aula. Arapiraca, AL: Grupo de Pesquisa Gnosiologia, Ética e Informação / CNPq / Ufal - Projeto Web Filosofia, 2021. Disponível em: https://www.gpgeinfo.org/p/fcltcrp.html. Acesso em: 18 abr. 2021.
FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. Tradução Roberto Machado. 14. ed. Rio de Janeiro: Graal, 1999.
FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: história da violência nas prisões. Tradução Raquel Ramalhete. 20. ed. Petrópolis: Vozes, 1999.
ROUSSEAU, Jean-Jacques. Discours sur les sciences et les arts. Paris: Gallimard, 1964, v. 3, p. 3-30.
ROUSSEAU, Jean-Jacques. Discurso sobre as ciências e as artes. [s. l.]: CultVox, 2001. Disponível em: http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/cv000012.pdf. Acesso em: 19 abr. 2021.
STAROBINSKI, Jean. As Máscaras da Civilização: ensaios. Tradução Maria Lúcia Machado. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.

Nota(s):
[1] Civilizar seria, tanto para os homens quanto para os objetos, abolir todas as asperezas e as desigualdades grosseiras, apagar toda rudeza, suprimir tudo que poderia dar lugar ao atrito, fazer de maneira a que os contatos sejam deslizantes e suaves. A lima, o polidor são os instrumentos que, figuradamente, asseguram a transformação da grosseria, da rusticidade em civilidade (STAROBINSKI, 2001, p. 26, grifo nosso).
[2] Hoje, que pesquisas mais sutis e um gosto mais fino reduziram em princípios a arte de agradar, reina em nossos costumes uma vil e enganadora uniformidade, parecendo que todos os espíritos foram atirados num mesmo molde: a polidez sempre exige, o decoro ordena; sem cessar, todos seguem os usos, jamais o seu próprio gênio. Ninguém mais ousa parecer aquilo que é; e, nesse constrangimento perpétuo, os homens que formam esse rebanho chamado sociedade colocados nas mesmas circunstâncias farão todos as mesmas coisas, se motivos mais poderosos não os desviarem (ROUSSEAU, 1964, p. 8, grifo nosso).

Exercício(s):
a) 405/pl/fclt_crp_dcldd
b) 405/me/fclt_crp_dscpln